nietzsche precisa de uma casa no futuro, lembre disso.

hoje eu falei de você como se você estivesse morta, vó.
eu nem pensei, eu só disse. foi tão estranho e tão natural que eu pensei isso enquanto continuava a jurar de pés juntinhos pela sua memória nordestina que fala gota serena. eu não sei bem o que isso significa, mas o estranho é que eu não senti mais nenhuma angústia e nenhum daqueles choros convulsivos que eu tive ao longo desses anos longe mais. porque eu acho que, de fato, quando saímos da vida de alguém sem intenção de voltar, essas pessoas meio que morrem pra gente. não em memória, mas em qualquer possibilidade de futuro.
e foi só sereno lembrar da minha infância e das tapiocas e deslizar na garagem ensaboada. acho que eu fiz as pazes com esse passado e também com minhas escolhas de futuro.
ontem também foi o meu primeiro dia cem por cento em três anos e meio.
eu digo cem por cento porque quando eu estava com depressão eu contava o tamanho da minha tristeza em porcentagem: ah, hoje estou "bem", estou -5%. O meu pior foram os -80%, aquele dia foi realmente horrível. Mas ontem eu tive o meu primeiríssimo de fato dia cem por cento em muitos e muitos longos meses. É engraçado porque quando você está tendo um dia -80% você nunca imagina que a vida pode ser longa e boa e que o tempo pode curar. Pensar em uma vida longa parece só significar que você vai viver muito mais tempo de sofrimento, porque dói tanto que é como se fosse quase impossível suportar e você conta as horas e se diz: só até amanhã, só até amanhã. e no dia seguinte você se repete isso como um mantra e você parece uma pessoa não só completamente vazia, mas que esse oco no seu peito tem feridas horríveis e que tá tudo desprotegido pro vento e as bactérias do mundo e que elas sempre batem lá no fundo. e no dia seguinte você se repete que só até amanhã. de novo e de novo e de novo e de novo.
e ao que parece, um dia isso se torna verdade. um dia você está bem, mas demoram longos mil trezentos e trinta e cinco dias. eu achei que eu não ia aguentar até aqui, mas parece que de alguma forma, deitada no chão da faculdade e sentindo o vento no meu cabelo e dando risada por coisa pouca, que isso foi tão longo tempo atrás. A gente não fica sempre no -80%, às vezes tem um dia -20% e outro -50% e daí outro -5% e aos poucos a gente vai melhorando, mas bem aos pouquinhos mesmo sabe, que nem quando a gente vê areia caindo por um buraco bem pequenininho nas mãos de uma criança curiosa.
ontem eu deitei no sofá do meu centro acadêmico e o engraçado foi que eu senti que eu estava em casa e daí eu fiquei esperando pra ouvir se meu irmão entrava e vinha brincar de bagunçar o meu cabelo. eu nunca achei que fosse sentir isso naquele ambiente. foi uma surpresa agradável. e no ônibus ontem eu olhei pras barras de ferro amarelas nas quais a gente se apóia e eu não as via turvas como se não existissem e o mundo fosse um pedaço de bola flutuante e que tudo fosse irreal e que a vida de ninguém tivesse sentido.
o curioso disso tudo é que estar bem vem tão aos poucos que a gente nem percebe que vai chegando.
mas eu tive meu primeiro dia cem por cento.
e hoje eu estou aqui sentada no meu quarto e eu estou me perguntando porque uma das pessoas que eu mais amo não pode estar tendo seu primeiro dia cem por cento e vindo aqui me dar um abraço e eu penso repetidamente, como um mantra: aguente só até o dia seguinte, eu não estou pronta pra falar de você como se você tivesse morrido.
e eu já chorei bastante até agora mas eu não consigo deixar de pensar em como eu gostaria de dividir meus cem por cento e entregar pra ele em um potinho pra ver se ele sai do quarto e pra ver ele conversar comigo em um inglês de sotaque indiano e os braços abertos pra me dar um abraço ao falar pra mim que "you are so lovely, sir"
eu não quero te perder.
eu quero tanto que você fique bem que nem cabe no meu peito e meus cem por cento se encolhem nas minhas lágrimas porque eu não tenho você pra compartilhar isso e eu penso em você me contando sobre into de wild e naquela frase de que a felicidade só e real quando compartilhada e eu preciso de você aqui, desesperadamente.
eu preciso de você aqui nos próximos oitenta anos.
eu quero você aqui pra eu zoar da sua cara, passar pente garfo no seu cabelo, ser seu padrinho de casamento mesmo eu sendo uma menina, pra ver você amar e ser correspondido pela primeira e pela quinquagésima vez. eu quero estar ali pra ver você encontrando pessoas maravilhosas na sua vida e saindo pra balada pela primeira vez, e também pra ir em uma junto com você e a gente beber catuaba e inventar regras pra jogar war. eu quero te abraçar mil vezes mil vezes ainda e te dizer que eu te amo até você acreditar que amor é possível e que não importa o que você faça ou como você me trate, que eu ainda vou te amar. eu quero pegar uma carona com você um dia, e te ver sendo pai pela primeira vez. eu quero ver você numa casa grande e com um são bernardo chamado nietzche vindo me cumprimentar feliz no portão. eu quero conhecer a mulher com quem você vai se casar e eu quero ler o primeiro livro que você escrever. eu quero que você brinque de bagunçar o meu cabelo por muitos e muitos anos ainda e eu quero que você me leve pro altar junto com papai. eu preciso que você esteja lá. eu quero deixar meus filhos pra você cuidar na sua casa, nem que seja só com você e seu cachorro nietzsche. eu quero te ver passar no vestibular e fazendo amigos pra vida inteira, reclamando de dores no quadril ao jogar futebol lá pros seus sessenta anos. eu quero ainda te ver chorar comigo e sorrir comigo muitas vezes. eu quero assistir com você até suas séries horríveis das quais eu não gosto, porque pra mim o mais importante não é o que nós dois estejamos fazendo, contanto que estejamos juntos.
esse texto talvez seja uma espécie de prece para o universo e para iemanjá, um pedido pra que os ventos soprem no oco do seu peito para que você fique e que as coisas vão mudar e que você pode se apoiar em mim e que vamos tentar encontrar respostas ou que eu vou estar lá segurando a sua mão se você resolver procurá-las sozinho.
e só de pensar que eu posso te perder e que você está no quarto ao lado mais tão distante, eu não consigo não chorar muito.
eu te amo, sir. you may not believe right now, but you are lovely indeed.
e eu ainda te devo muito pelo pallet, por sessenta anos, não se esqueça de me cobrar.



Sê quem cê é.

Bento, garçom de um boequim esquina, com cheiro de cigarro e perfume, chegando todo dia de bicicleta e dando boa noite pra quem lhe sorrisse. Cantava de noite como pagamento meio dado pelo serviço quase não feito, afinal virava as noites de conversa com Dona Joaquina, a dona do bar.

Bento do cartão de feliz aniversário e da festa surpresa que incluía ele, a netinha da Joaquina e o moço que lavava as louças chamado Cris. Bento do sorriso murcho, que falava libras porque a mãe era surda, Bento do nome falado com o n bem enjoado porque era assim que Dona Joaquina dizia.

Vez por outra ela dava um beliscão enquanto ele fumava, pois onde viu isso dá câncer menino!
Nada, Dona Joaquina. Fumar é sexy. E sorria todos os dentes de aparelho ortodôntico enquanto apagava a chama só pra ver ela sorrir das meninas que ele não atraía. Vai lá, muleque. Dizia ela enquanto aporrinhava com umas batidinhas nas costas. Vai lá que aquela ali sorriu pra você.

Bento aqui, Bento acolá, Bento que levava uns esporros das minas por ser um brincalhão. Ele era uma compilação de livros velhos enfiados na ponta do nariz, de um tênis furado e cachinhos crespos bons de enrolar. Tinha uma beleza que não acreditava que tinha e fingia que era bom de piada, mas é mentira porque ele era mesmo. Ô Bento, você que assina bilhetes de amor com o nome ao contrário achando que ninguém vai saber, só porque acha que é esquisito demais pra alguém dar valor numas letras tortas e sem maiúscula que você escreve no meio da madrugada: sê quem cê é.

Se quem cê é que vale mais que ser aquele que já foi. Se pá você era melhor no stand up que com o violão. Ou quem sabe até arranjava um jeito de fazer piada cantada. Eu sei que você acha que não, e que na verdade tem muito medo de público e do que as pessoas vão dizer. Mas xou te contar um segredo: é todo mundo assim. E a maioria dos que sobem no palco pra se vangloriar só têm a mais que você a coragem de pôr o pé na estrada. Quem acredita demais no que é não tem a sua humanidade no fundo dos olhos que entende as feridas que vão dentro de cada um. E quem melhor que você, pra ser quem você é? Vai lá, Bento. Eu tô sorrindo procê.

"Lua beija Marrie.
É só um beijinho de leve nos lábios,
E ela o retribui.
Às vezes as pessoas são bonitas,
Não pela aparência física.
Nem pelo que dizem.
Só pelo que são." -  Markus Zusak, Eu sou o mensageiro